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O Caderno do Chiquinho

Chovia forte. Estacionei e um rapaz veio em minha direção. Deu um educado “bom dia, mestre” e estendeu um guarda-chuva. Argumentei que se eu o usasse ele se molharia. Respondeu que não tinha problema. Sem entender a cortesia, aceitei. Chegando aonde qureia, devolvi o guarda-chuva e agradeci. Ao retornar, ainda chovia. O rapaz ofereceu-me de novo a gentileza.

Dias depois, fui abordado na cantina. Era o mesmo rapaz. Disse ele: “Mestre, desculpe interromper, mas eu preciso de ajuda para comprar remédio. Fiz uma cirurgia no dente e não posso trabalhar. O senhor sabe, eu lavo carro aqui. Terminei o ensino médio e estou atrás de coisa melhor”.

Vi de relance seu nome no papel que trazia: Francisco. Dei dez reais para o remédio. Disse também que deveria continuar estudando porque só assim gente honesta melhora de vida. “Eu sei. O senhor já me disse isso. E só pedi dinheiro do senhor porque sei que o senhor é do bem”, falou. “O senhor não lembra que o senhor me deu um caderno e um jogo de canetas? Eu nunca esqueci”.

Eu havia esquecido. Há muito tempo, chegava à universidade quando ouvi um garoto que lavava carros conversando. Chiquinho – assim se chamava – dialogava com outro lavador. Chiquinho pedia um adiantamento para comprar material escolar. Sua aula havia começado e ele não tinha nem caderno. No sábado seguinte, fiz supermercado e incluí um caderno, canetas e uma régua no meu carrinho. Na segunda, ao chegar para trabalhar, chamei o Chiquinho e disse: “Toma, Chiquinho. Não é por falta de caderno que tu não vais para a escola. E não vai esquecer que gente honesta só se sai da lama estudando”. Nunca vi um olhar tão agradecido.

Fui dar minha aula com a certeza de uma boa ação feita. Lembro disso e fico feliz. Não porque me sinto o melhor dos mortais, o cara de bom coração, doido para receber comentários de elogio pelo ato generoso. Não. Já havia até havia esquecido o fato se não fosse relembrado hoje pelo Francisco, o Chiquinho grande. O caderno do Chiquinho me fez pensar.

Podemos mudar a vida de outras pessoas com gestos simples. Um sorriso, um favor gratuito, um elogio sincero. Dizemos aos outros quais os seus problemas e falhas, por que eles nos irritam. Esquecemos de lhes dizer quais são suas virtudes e por que gostamos deles. Gastamos dinheiro com besteira e esquecemos que poucos reais podem acordar sonhos.

Nosso mundo está perdendo a humanização. Entramos num esquema individualizante. Mas se por um lado somos indivisíveis, por outro somos subjetivamente fragmentados. Nessa nossa dispersão subjetiva, lembro Ortega y Gasset: “eu sou eu e minhas circunstâncias”. São deprimentes as pessoas que pensam com o umbigo e não com a cabeça.

Podemos fazer a diferença para aqueles que são socialmente menos privilegiados. O que move o ser humano é o sentir-se útil. Isso envolve querer e tratar bem as pessoas, dar bom-dia à caixa do supermercado, desejar bom trabalho aos que nos servem. Envolve dizer aos que amamos o quanto os amamos e no que são importantes para nós. Aprendi com minha vó a dizer “eu te amo” desavergonhadamente a quem amo. Sempre que tenho chance. Enquanto tenho chance.

É isso. Fico aqui torcendo para que cada um pense um pouco e ache qual é o caderno e quem é o Chiquinho da sua história. Nos dias chuvosos – literal e metaforicamente –, isso pode fazer diferença. A propósito, querido leitor, obrigado por me ler.

Sérgio Freire

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