Skip to main content

ELE MORREU


Estava jogado em algum lugar o corpo dele sem vida, pálido, opaco, frio. Ela não estava próxima em seus últimos suspiros, nem ouviu os médicos declararem a hora oficial do óbito, mas sabia qual tinha sido a causa da morte: falência cardíaca pela ausência de sentimentos e traumatismo craniano causado pelo choque da realidade.

- Eu o matei - pensou, mas não sabia que ele mesmo havia provocado seu suicídio lento, longo, eficaz e irreversível. Talvez o erro dela tenha sido amar cedo demais, se entregar demais, acreditar demais, mas não abria mão de ser ela mesma. Não cabia a ela a culpa dele não ter usado a razão e o sentimento para valorizar o quanto ela era - e continua sendo - especial.

A rotina o fez acordar um pouco morto todos os dias quando não a escolhia para enviar a primeira mensagem da manhã, quando não lembrava de cuidar dela durante a tarde e só ligava à noite quando não tinha mais nada pra fazer - ligava por hábito, ou talvez obrigação.
Ele morria pouco a pouco quando não segurava firme na mão dela ao caminharem próximos, quando debochava na frente das pessoas e a menosprezava com um senso de humor imbecil na frente de outros idiotas.

A morte flertava com ele quando a tratava mal na frente dos seus amigos, era grosseiro no restaurante e chegou a tirar todo encanto daquela viagem nas férias quando deu mais atenção pra ex pelo telefone.

Ele já era quase um defunto quando deixou de valorizá-la, quando preferiu escolher outras pessoas ao invés de ouvi-la, quando foi pro Google buscar respostas pra vida e desprezou toda bagagem de amadurecimento e a vontade dela de fazer com que ele deixasse de ser um menino e se transformasse num homem.

Ele já estava com o corpo rígido e frio quando não ligou pros sonhos dela nos quais ele mesmo estava incluso, ignorou aquela viagem a dois que ela tanto planejava e aquele projeto de casa na praia para passarem o calor do verão juntos.

Ele deixou de respirar quando não quis conhecer a família dela, quando negligenciou cuidado pro filho, quando apontou os defeitos dos pais e a obrigou esquecer dos seus amigos ignorando a importância daqueles que torciam tanto pela felicidade dela incondicionalmente.

Ele morreu sozinho por não ter a capacidade de olhar pra ela, de ampará-la nas suas dificuldades, oferecer um ombro amigo nos momentos de dor e ser capaz de ouvir suas dores. Julgava o  choro dela infantil e a considerava frágil demais, mal sabia que as lágrimas eram a intuição dela gritando  pelos sentimentos que tinham o cheiro da morte, eram zumbis que andavam sem vida.

Ele morreu por só pensar nele, por ser egoísta, por ficar tanto tempo no smartphone e por ignorar que ela não lembrava nem de si mesma quando estava com ele. Manter-se vivo dentro daquela mulher só dependia dele, mas ele escolheu morrer...

Espera. Espera que ele vai tentar ressuscitar. Vai balbuciar algumas palavras sem sentido, algumas promessas baratas e tentar demonstrar que não morreu. Logo, logo ele vai tentar simular que existe algo vivo dentro dele. Ele vai tentar reviver o carinho que nunca te dedicou, a atenção que sempre deixou de lado, os sonhos que nunca existiram, o sentimento que nunca chegou a amadurecer, porque na verdade sempre esteve dedicado a outras pessoas no passado, ou algumas fúteis novidades do dia a dia.

Mas no fundo ela sabe que ninguém ressuscita. A ciência ainda não encontrou uma forma de fazer renascer um corpo morto, então, ela se conformou com o fato de que ele agora não pode fazer mais nada, ser mais nada. Ele foi, não é mais. É passado e liberou finalmente o presente dela.

Ele morreu e somente em contos de fadas eles acordam depois de um beijo. Só em filmes de ação eles renascem depois de uma massagem no coração. Só na cabeça de uma menina ingênua ele continuaria vivo, porque de fato, ele já morreu faz muito tempo. A cova de sete palmos que ele mesmo cavou é o único lugar onde deve permanecer.

Ela cansou de perdoar, não queria mais ser o plano B e sabia que bastariam alguns poucos dias para que ele voltasse a ignorar tudo novamente. Ele foi só uma falsa esperança, uma expectativa made in China e ela sabe que a única saída é deixá-lo morto, encarar a dor da morte de algo que nunca existiu de forma recíproca.

Ela sabia que não poderia mais continuar porque a doença dele a mataria também. Então se virou, voltou seu olhar pro futuro e resolveu que iria estabelecer um prazo de validade pro seu luto. Sabia que a dor traria o aprendizado necessário para encontrar um grande homem e não mais se perder em pequenos meninos.

Popular posts from this blog

Pra Rua Me Levar* - e Divagações**

“Não vou viver como alguém que só espera um novo amor,  há outras coisas no caminho onde eu vou.  Às vezes ando só trocando passos com a solidão,  momentos que são meus e que não abro mão.” O que é o tão descrito amor e quais os sentimentos que ele envolve? As pessoas hoje em dia confundem muito – e talvez nem saibam – o que de fato representa o amor. Sem respeito, admiração, companheirismo, cumplicidade, alegria, realização e tantos outros detalhes, o amor nunca pode acontecer plenamente dentro de alguém. Por isso mesmo, o amor compreende muito mais que um único sentimento na vida das pessoas e nunca pode andar divorciado de outras ações. Existem momentos em que somos forçados a andar sozinhos - trocar passos com a solidão. Não porque queremos, mas porque não existe outra opção. Essa caminhada acaba sendo necessária, mesmo porque, a solidão não deve assustar e nem comprometer o sono: Passado algum tempo de aprendizado você passa a se conhecer, aceitar e ser feliz, independente de

O Lado Fatal

I Quando meu amado morreu, não pude acreditar: andei pelo quarto sozinha repetindo baixo: "Não acredito, não acredito." Beijei sua boca ainda morna, acarinhei seu cabelo crespo, tirei sua pesada aliança de prata com meu nome e botei no dedo. Ficou larga demais, mas mesmo assim eu uso. Muita gente veio e se foi. Olharam, me abraçaram, choraram, todos com ar de incrédula orfandade. Aquele de quem hoje falam e escrevem (ou aos poucos vão-se esquecendo) é muito menos do que este, deitado em meu coração, meu amante e meu menino ainda. II Deus (ou foi a Morte?) golpeou com sua pesada foice o coração do meu amado (não se vê a ferida, mas rasgou o meu também). Ele abriu os olhos, com ar deslumbrado, disse bem alto meu nome no quarto de hospital, e partiu. Quando se foram também os médicos e sua máquinas inúteis, ficamos sós: a Morte (ou foi Deus?) o meu amado e eu. Enterrei o rosto na curva do seu ombro como sempre fazia, disse as palavras de amor que costumávamos trocar. O silêncio

La Marioneta de Trapo

Se, por um instante, Deus se esquecesse de que sou uma marionete de trapo e me presenteasse com um pedaço de vida, possivelmente não diria tudo o que penso, mas, certamente, pensaria tudo o que digo. Daria valor às coisas, não pelo que valem, mas pelo que significam. Dormiria pouco, sonharia mais, pois sei que a cada minuto que fechamos os olhos, perdemos sessenta segundos de luz. Andaria quando os demais parassem, acordaria quando os outros dormem. Escutaria quando os outros falassem e gozaria um bom sorvete de chocolate. Se Deus me presenteasse com um pedaço de vida, vestiria simplesmente, me jogaria de bruços no solo, deixando a descoberto não apenas meu corpo, como minha alma. Deus meu, se eu tivesse um coração, escreveria meu ódio sobre o gelo e esperaria que o sol saísse. Pintaria com um sonho de Van Gogh sobre estrelas um poema de Mario Benedetti e uma canção de Serrat seria a serenata que ofereceria à Lua. Regaria as rosas com minhas lágrimas para sentir a dor dos espinhos