Skip to main content

Ninguém Esconde Nada de Ninguém

Há milênios a maioria acredita que o corpo pouco tem a ver com o íntimo - e que sempre será possível disfarçar o que sentimos.


Mas estamos dizendo - e mostrando: ninguém esconde nada de ninguém; somos todos transparentes diante dos olhos de um bom observador interessado.

Sua namorada ou sua mulher, pode crer, te percebem - demais! - enquanto estiverem interessadas em você, seja porque te amam, seja porque te odeiam!

Existe, como nos ensinou Bergson, uma memória de imagens - tida como se fosse toda a memória - e uma memória de posição e movimento, capaz de guardar e integrar toda a vida passada, mas bem fora de alcance da consciência comum; ao alcance, porém, de um sentido bem conhecido dos neurofisiologistas mas ignorado por todos os demais: a propriocepção, nosso senso de movimento e de posição.

Temos todos seis sentidos, e não cinco, mas quase ninguém sabe disso. Muito da atividade clínica de Reich consistia em apontar, mostrar ou imitar as maneiras, caras e posições da pessoa até ela perceber - pela propriocepção - esses jeitos e caras, até ela fazer de si mesma uma imagem compatível com o que mostrava - e os outros viam.

Nossos músculos, juntas e tendões estão recheados de orgânulos sensíveis a tensões, trações, compressões e movimentos; se treinarmos, poderemos ganhar consciência cada vez mais fina dessas realidades - também "internas" mas sensoriais, fáceis de sentir, como é fácil ver com os olhos ou cheirar com o nariz.

Repare nestas palavras: intenção (em tensão), contração (ação contra), contensão (com tensão). Como você se contém? Com-tensão! Então vamos lá. Feche os olhos e mova um braço, devagar, sentindo como se faz esse movimento; o que lhe permite sentir tal movimento é a propriocepção.

Ela comunica à consciência as noções/sensações de pre-parados (parados antes!), expectantes, prontos para brigar, prontos para se afastar, prontos para abraçar ou controlando-se, "segurando-se", fechados. São todas elas, atitudes tanto "mentais" quanto "corporais". Todas elas são bem "desenhadas", diferentes umas das outras, todas elas preparação para atos igualmente bem determinados, todas elas visíveis para os outros e invisíveis para o sujeito.

Não parece, mas a briga de casal começa aqui, nas expressões e/ou na linguagem não-verbal, tudo quanto "dizemos" com o corpo, a face e a voz. A maior parte das brigas começa por aí. Exemplos: "Manhê, olha ele olhando pra mim daquele jeito!", "Não aguento mais olhar para sua cara de enjoada", "Ai, que jeito mais antipático", "Você é de um orgulho!" (jeito de orgulhoso), "Não adianta se fazer de vítima!" (jeito de vítima), "Por que você me olha com essa cara?".

Há milênios a maioria acredita que o corpo pouco tem a ver com o íntimo - e que sempre será possível disfarçar o que sentimos. Na verdade, negar a possibilidade de disfarçar sentimentos e tendências desagradáveis é comprometer toda a pirâmide de poder e vários costumes sociais.

Também nessa área das caras e jeitos a sociedade arrumou bem as coisas. Aprendemos desde muito cedo que "não se deve" dizer o que estamos vendo na cara ou no jeito de mamãe, do papai, do professor, papa, presidente, patrão.

Imagine as seguintes frases ditas para o interessado: "Mãe, você é muito invejosa e despeitada", "Pai, o senhor tem medo da mamãe", "Fessor, o senhor não está interessado no que está dizendo", "Fessora, a senhora tem uma voz estridente que raspa o ouvido da gente", "Chefe, o senhor parece que tem o rei na barriga", "Senhor deputado, vossa seriedade não convence ninguém".

Em todos esses casos, melhor cantar com o coro e mostrar que acreditamos na sua sabedoria do que dizer aquilo que todos estão vendo - menos o sujeito.

"Quem vê cara não vê coração." Será? Reich, as mulheres, os policiais e os bons psicólogos sabem muito bem: vendo a cara estamos vendo todas as emoções a se formar e crescer nas pessoas, a raiva, a inveja, o desprezo, o orgulho, o sorriso de pouco caso, a indiferença, a curiosidade e quanto mais!

J. A. Gaiarsa

Comments

Popular posts from this blog

Pra Rua Me Levar* - e Divagações**

“Não vou viver como alguém que só espera um novo amor,  há outras coisas no caminho onde eu vou.  Às vezes ando só trocando passos com a solidão,  momentos que são meus e que não abro mão.” O que é o tão descrito amor e quais os sentimentos que ele envolve? As pessoas hoje em dia confundem muito – e talvez nem saibam – o que de fato representa o amor. Sem respeito, admiração, companheirismo, cumplicidade, alegria, realização e tantos outros detalhes, o amor nunca pode acontecer plenamente dentro de alguém. Por isso mesmo, o amor compreende muito mais que um único sentimento na vida das pessoas e nunca pode andar divorciado de outras ações. Existem momentos em que somos forçados a andar sozinhos - trocar passos com a solidão. Não porque queremos, mas porque não existe outra opção. Essa caminhada acaba sendo necessária, mesmo porque, a solidão não deve assustar e nem comprometer o sono: Passado algum tempo de aprendizado você passa a se conhecer, aceitar e ser feliz, independente de

O Lado Fatal

I Quando meu amado morreu, não pude acreditar: andei pelo quarto sozinha repetindo baixo: "Não acredito, não acredito." Beijei sua boca ainda morna, acarinhei seu cabelo crespo, tirei sua pesada aliança de prata com meu nome e botei no dedo. Ficou larga demais, mas mesmo assim eu uso. Muita gente veio e se foi. Olharam, me abraçaram, choraram, todos com ar de incrédula orfandade. Aquele de quem hoje falam e escrevem (ou aos poucos vão-se esquecendo) é muito menos do que este, deitado em meu coração, meu amante e meu menino ainda. II Deus (ou foi a Morte?) golpeou com sua pesada foice o coração do meu amado (não se vê a ferida, mas rasgou o meu também). Ele abriu os olhos, com ar deslumbrado, disse bem alto meu nome no quarto de hospital, e partiu. Quando se foram também os médicos e sua máquinas inúteis, ficamos sós: a Morte (ou foi Deus?) o meu amado e eu. Enterrei o rosto na curva do seu ombro como sempre fazia, disse as palavras de amor que costumávamos trocar. O silêncio

La Marioneta de Trapo

Se, por um instante, Deus se esquecesse de que sou uma marionete de trapo e me presenteasse com um pedaço de vida, possivelmente não diria tudo o que penso, mas, certamente, pensaria tudo o que digo. Daria valor às coisas, não pelo que valem, mas pelo que significam. Dormiria pouco, sonharia mais, pois sei que a cada minuto que fechamos os olhos, perdemos sessenta segundos de luz. Andaria quando os demais parassem, acordaria quando os outros dormem. Escutaria quando os outros falassem e gozaria um bom sorvete de chocolate. Se Deus me presenteasse com um pedaço de vida, vestiria simplesmente, me jogaria de bruços no solo, deixando a descoberto não apenas meu corpo, como minha alma. Deus meu, se eu tivesse um coração, escreveria meu ódio sobre o gelo e esperaria que o sol saísse. Pintaria com um sonho de Van Gogh sobre estrelas um poema de Mario Benedetti e uma canção de Serrat seria a serenata que ofereceria à Lua. Regaria as rosas com minhas lágrimas para sentir a dor dos espinhos