Skip to main content

Canção dos Homens

Que quando chego do trabalho ela largue por um instante o que estiver fazendo - filho, panela ou computador - e venha me dar um beijo como os de antigamente.

Que quando nos sentarmos à mesa para jantar ela não desfie a ladainha dos seus dissabores domésticos. E se for uma profissional, que divida comigo o tempo de comentarmos nosso dia.

Que se estou cansado demais para fazer amor, ela não ironize nem diga que "até que durou muito" o meu desejo ou potência. Que quando quero fazer amor ela não se recuse demasiadas vezes, nem fique impaciente ou rígida, mas cálida como foi anos atrás.

Que não tire nosso bebê dos meus braços dizendo que homem não tem jeito pra isso, ou que não sei segurar a cabecinha dele, mas me ensine docemente se eu não souber.

Que ela nunca se interponha entre mim e as crianças, mas sirva de ponte entre nós quando me distancio ou me distraio demais.

Que ela não me humilhe porque estou ficando calvo ou barrigudo, nem comente nossas intimidades com as amigas, como tantas mulheres fazem.

Que quando conto uma piada para ela ou na frente de outros, ela não faça um gesto de enfado dizendo "Essa você já me contou umas mil vezes".

Que ela consiga perceber quando estou preocupado com trabalho, e seja calmamente carinhosa, sem me pressionar para relatar tudo, nem suspeitar de que já não gosto dela.

Que quando preciso ficar um pouco quieto ela não insista o tempo todo para que eu fale ou a escute, como se silêncio fosse falta de amor.

Que quando estou com pouco dinheiro ela não me acuse de ter desperdiçado com bobagens em lugar de prover minha família.

Que quando eu saio para o trabalho de manhã ela se despeça com alegria, sabendo que mesmo de longe eu continuo pensando nela.

Que quando estou trabalhando ela não telefone a toda hora para cobrar alguma coisa que esqueci de fazer ou não tive tempo.

Que não se insinue com minha secretária ou colega para descobrir se tenho amante.

Que com ela eu também possa ter momentos de fraqueza e de ternura, me desarmar, me desnudar de alma, sem medo de ser criticado ou censurado: que ela seja minha parceira, não minha dependente nem meu juiz.

Que cuide um pouco de mim como minha mulher, mas não como se eu fosse uma criança tola e ela a mãe, a mãe onipotente, que não me transforme em filho.

Que mesmo com o tempo, os trabalhos, os sofrimentos e o peso do cotidiano, ela não perca o jeito terno e divertido que tanto me encantou quando a vi pela primeira vez.

Que eu não sinta que me tornei desinteressante ou banal para ela, como se só os filhos e as vizinhas merecessem sua atenção e alegria.

E que se erro, falho, esqueço, me distancio, me fecho demais, ou a machuco consciente ou inconscientemente, ela saiba me chamar de volta com aquela ternura que só nela eu descobri, e desejei que não se perdesse nunca, mas me contagiasse e me tornasse mais feliz, menos solitário,e muito mais humano.

Lya Luft

Comments

Popular posts from this blog

A Vida é uma Porcaria

Sim, a vida é mesmo uma porcaria! Não importa se você é rico, pobre, alto, magro, gordo, feio, bonito, famoso, forte, fraco, tímido, divorciado, casado, com filhos, com netos, bêbado, sóbrio ou ainda burro e ignorante. A vida é uma porcaria. Como eu sei disso? É bem óbvio. Basta observar as pessoas por aí. Existem dois tipos de pessoas. As que sabem que a vida é uma porcaria, como eu e aquelas que por algum motivo cretino tirado de não sei aonde, acham que a vida deve ser boa, ou melhor, que é boa. Eu explico. Na vida de todo mundo, sempre vão acontecer mais coisas ruins do que coisas boas, seja por azar, seja por inapetência, seja por vingança ou até por uma questão de expectativas. Basta olhar os animais nos documentários da TV, vocês já viram o inferno que eles passam para comer e fazer sexo? As vezes eles passam uma semana inteira no “rock and roll” para comer uma droga de um rato (no caso das corujas, coitadas). E os gafanhotos que finalmente quando conseguem copul...

HOJE: Lembrar de Esquecer Você

Hoje eu lembrei de esquecer você mais um pouquinho. O plano está dando certo porque nem precisei apelar pro recadinho que colei na porta da geladeira. Aos poucos consigo te enxergar como uma pessoa normal, comum, exatamente como eu. Não preciso mais olhar lá pra cima, na direção da admiração sublime, para te ver... Faz parte. Não, quer dizer, fez parte. Acho mesmo que meu maior receio era me deixar perdido dentro de você e ir embora. Como me reencontraria? Como seria o recomeço faltando pedaços? Mas isso tudo é lenda que as pessoas inseguras nos contam. O desapego ocorre aos poucos, devagar. A gente vai lembrando menos, falando menos, tocando menos. A gente elege outras prioridades, inventa novas necessidades e vai seguindo assim. Acontece mais ou menos como viver um conto de fadas ao contrário: Cria novos heróis para esquecer os vilões que, acredite, um dia foram heróis. É uma conta que não bate, mas quem disse que existe lógica em tudo?! Não quero encontrar lógica...

O Lado Fatal

I Quando meu amado morreu, não pude acreditar: andei pelo quarto sozinha repetindo baixo: "Não acredito, não acredito." Beijei sua boca ainda morna, acarinhei seu cabelo crespo, tirei sua pesada aliança de prata com meu nome e botei no dedo. Ficou larga demais, mas mesmo assim eu uso. Muita gente veio e se foi. Olharam, me abraçaram, choraram, todos com ar de incrédula orfandade. Aquele de quem hoje falam e escrevem (ou aos poucos vão-se esquecendo) é muito menos do que este, deitado em meu coração, meu amante e meu menino ainda. II Deus (ou foi a Morte?) golpeou com sua pesada foice o coração do meu amado (não se vê a ferida, mas rasgou o meu também). Ele abriu os olhos, com ar deslumbrado, disse bem alto meu nome no quarto de hospital, e partiu. Quando se foram também os médicos e sua máquinas inúteis, ficamos sós: a Morte (ou foi Deus?) o meu amado e eu. Enterrei o rosto na curva do seu ombro como sempre fazia, disse as palavras de amor que costumávamos trocar. O silêncio ...