Skip to main content

Sociedade Anestesiada



A experiência de ter que escolher entre desejos conflitantes nos mostra que precisamos de um critério para as escolhas. Se não temos nenhum critério mais estável, corremos um sério risco de nos sentirmos meio perdidos no meio de desejos erráticos, que nos aponta ao mesmo tempo ou então mudam de caminho constantemente. E se nós não decidimos qual será este critério orientador, a cultura dominante, com seus meios de comunicação, acabará decidindo por nós.

O tempo atual, talvez como nunca antes, está marcado por uma mentalidade que poderíamos denominar de "mentalidade da anestesia". Vivemos numa época, onde a dor não pode existir. Quando ela aparece, já está sendo anestesiada. Vivemos numa cultura de anestésicos. Isso começa com a dor de cabeça e com a injeção para evitar a dor provocada pelo tratamento no dentista. Para que aquela injeção, por sua vez, não cause alguma dor, se anestesia primeiro o lugar, onde a agulha da seringa entra.

O que constatamos no nível da dor física continua no nível da dor psíquica. Ela está sendo anestesiada. Ela não pode acontecer, e quando acontece, se oferecem mil maneiras para fugir dela, para eliminá-la. O resultado é que vivemos num estado constante de anestesiados, ou numa constante corrida através de novos anestésicos. Quem está com algum problema começa a comer mais, ou a beber mais, ou a consumir mais, comprando roupas e calças e artigos eletrônicos para se consolar. Quem está com algum problema tenta esquecer através de música, de dança, de sexo, de esportes radicais ou de pílulas contra dor e depressão.

Quem está diante de um problema começa a fumar, a beber ou a usar drogas. Quem está diante de um problema, se suicida; solução que dispensa o uso de qualquer anestésico a mais. Solução, porém, que se revela, em última análise, também como fuga diante de um problema que causou dor. O resultado de toda essa correria é que estamos perdendo, cada vez mais, a capacidade de suportar a dor. Sem suportar a dor, porém, a pessoa não cresce como pessoa.

Assim, estamos de novo confrontados com um dos paradoxos de nossa existência: para achar o sentido de nossa vida, devemos crescer; para crescer, porém, devemos ser capazes de suportar e de viver certo nível de dor, de sofrimento e de frustração. Esta dor e esta frustração, o sistema consumista de hoje tenta anestesiar com todos os meios. Como anestesiados, porém, não vamos evoluir como pessoas.

E não evoluindo, não vamos achar o sentido de nossa vida. Querendo porém achar tal sentido, devemos primeiro aceitar que nem toda dor pode ser anestesiada. Devemos reconhecer que a dor, e sobretudo a dor psíquica, tem valor. Devemos nos tornar capazes de suportar tal dor, de carregá-la, e carregando-a, vamos crescer como pessoas. Tornando-nos pessoas evoluídas, estamos dando os primeiros passos rumo à descoberta daquilo que é o sentido de nossa vida. Descoberta fascinante e que nos tornará felizes.

Por: Eduardo Rocha Quintella

Comments

Popular posts from this blog

Pra Rua Me Levar* - e Divagações**

“Não vou viver como alguém que só espera um novo amor,  há outras coisas no caminho onde eu vou.  Às vezes ando só trocando passos com a solidão,  momentos que são meus e que não abro mão.” O que é o tão descrito amor e quais os sentimentos que ele envolve? As pessoas hoje em dia confundem muito – e talvez nem saibam – o que de fato representa o amor. Sem respeito, admiração, companheirismo, cumplicidade, alegria, realização e tantos outros detalhes, o amor nunca pode acontecer plenamente dentro de alguém. Por isso mesmo, o amor compreende muito mais que um único sentimento na vida das pessoas e nunca pode andar divorciado de outras ações. Existem momentos em que somos forçados a andar sozinhos - trocar passos com a solidão. Não porque queremos, mas porque não existe outra opção. Essa caminhada acaba sendo necessária, mesmo porque, a solidão não deve assustar e nem comprometer o sono: Passado algum tempo de aprendizado você passa a se conhecer, aceitar e ser feliz, independente de

O Lado Fatal

I Quando meu amado morreu, não pude acreditar: andei pelo quarto sozinha repetindo baixo: "Não acredito, não acredito." Beijei sua boca ainda morna, acarinhei seu cabelo crespo, tirei sua pesada aliança de prata com meu nome e botei no dedo. Ficou larga demais, mas mesmo assim eu uso. Muita gente veio e se foi. Olharam, me abraçaram, choraram, todos com ar de incrédula orfandade. Aquele de quem hoje falam e escrevem (ou aos poucos vão-se esquecendo) é muito menos do que este, deitado em meu coração, meu amante e meu menino ainda. II Deus (ou foi a Morte?) golpeou com sua pesada foice o coração do meu amado (não se vê a ferida, mas rasgou o meu também). Ele abriu os olhos, com ar deslumbrado, disse bem alto meu nome no quarto de hospital, e partiu. Quando se foram também os médicos e sua máquinas inúteis, ficamos sós: a Morte (ou foi Deus?) o meu amado e eu. Enterrei o rosto na curva do seu ombro como sempre fazia, disse as palavras de amor que costumávamos trocar. O silêncio

La Marioneta de Trapo

Se, por um instante, Deus se esquecesse de que sou uma marionete de trapo e me presenteasse com um pedaço de vida, possivelmente não diria tudo o que penso, mas, certamente, pensaria tudo o que digo. Daria valor às coisas, não pelo que valem, mas pelo que significam. Dormiria pouco, sonharia mais, pois sei que a cada minuto que fechamos os olhos, perdemos sessenta segundos de luz. Andaria quando os demais parassem, acordaria quando os outros dormem. Escutaria quando os outros falassem e gozaria um bom sorvete de chocolate. Se Deus me presenteasse com um pedaço de vida, vestiria simplesmente, me jogaria de bruços no solo, deixando a descoberto não apenas meu corpo, como minha alma. Deus meu, se eu tivesse um coração, escreveria meu ódio sobre o gelo e esperaria que o sol saísse. Pintaria com um sonho de Van Gogh sobre estrelas um poema de Mario Benedetti e uma canção de Serrat seria a serenata que ofereceria à Lua. Regaria as rosas com minhas lágrimas para sentir a dor dos espinhos