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"Devolver uma pessoa a ela mesma é ensinar-lhe um jeito de expulsar o que é ruim e ajudá-la a cultivar aquilo que é bom."

"Há pessoas que nos roubam... E pessoas que nos devolvem... Pessoas que nos machucam e nos deixam dores que doem no fundo da alma... ".


Por que falar deste tema: a dificuldade de relacionar-se?

Eu creio que nós, como evangelizadores, temos de eleger os temas que acreditamos ser pertinentes dentro do contexto da evangelização. O Evangelho abrange toda a nossa vida, tudo aquilo que somos como pessoa; por isso é importante que descubramos como é que construímos as nossas relações e como estabelecemos os nossos relacionamentos. Uma vez que nós queremos conversão – e isso significa entrar na dinâmica do processo de Deus em nós – precisamos analisar aquilo que é fraco em nós.

O meu desejo de escrever algo que falasse sobre isso era, justamente, traduzir um pouco daquilo que (eu creio) seja urgente dentro do contexto da evangelização. Nós precisamos traduzir de maneira muito humana, muito concreta o que significa ser de Deus. Assumir essa condição de pessoa, essa postura, esse jeito de ser gente, buscando a inteireza o tempo todo é, sem dúvida, viver o processo de santidade. É uma tradução muito atual daquilo que chamamos de santidade.


Em sua opinião, o mundo está nos apresentando pessoas mais interesseiras?

Tenho muito medo das pessoas que geram opinião pública. A mídia funciona muito com essas aparições meteóricas de pessoas que, porque ficaram trancafiadas dentro de um reality show – e ganharam [o prêmio] – tornam-se celebridades e têm sempre alguma coisa a dizer, mesmo que não estejam preparadas para isso. Essas pessoas geram comportamentos, atitudes. Isso é muito preocupante, porque quando temos uma cultura nivelada em celebridades, que não têm o que dizer, acabamos nos "nivelando por baixo" também.


Precisamos – como homens e mulheres cristãos – trazer cada vez mais a figura de Jesus para o contexto da sociedade. E traduzir Cristo é, de alguma forma, combater esse tipo de "modelo de não sei o quê", que gera um comportamento altamente desqualificado, despersonalizado, mas que, infelizmente, por falta de reflexão, acabamos engolindo de qualquer jeito.

Como é possível que alguém nos roube de nós mesmos?

É muito fácil que alguém nos roube de nós mesmos, porque cada vez que nós somos influenciados – e existe uma força para levar de nós aquilo que temos de mais precioso, que é a nossa liberdade – então, já estamos sendo roubados. Cada vez que você percebe que tem de deixar de ser você mesmo para estar num grupo, quando percebe que a sua vontade está fragilizada ou que o outro tem um acesso inescrupuloso às suas decisões, você está sendo roubado. O seqüestro da subjetividade é muito comum; ele acontece nos mais diversos meios, nas mais diversas situações e até mesmo em inusitados encontros corremos o risco de ser roubados, de perder a inteireza.


O senhor disse que o livro "nasceu dos olhos que um dia o olharam e pediram ajuda". Como se sente ao ver, nos olhos de alguém, um pedido de socorro?

Eu me sinto na necessidade de devolver alguma coisa para ele. Mesmo que eu não tenha o dom de devolver tudo o que ele perdeu, sempre trabalho na perspectiva de uma palavra boa. Quando uma palavra positiva substitui uma negativa, ela tem o poder de refazer quem a escuta. Muitas vezes, somos escravos das idéias ruins, das más lembranças e tudo isso é roubo. Quando eu permito que uma lembrança ruim tome conta de mim a ponto de gerar uma atitude, uma postura ou um jeito de ser, estou, naturalmente, perdendo o meu valor como pessoa, porque eu acabo ficando à margem daquilo que eu poderia ser.


Devolver uma pessoa a ela mesma é, quem sabe, ensinar-lhe um jeito de expulsar o que é ruim e ajudá-la a cultivar aquilo que é bom. Creio que, na minha missão de padre, no meu trabalho como evangelizador, eu não faço outra coisa senão propor uma palavra, um pensamento ou uma conduta que façam bem.



Qual experiência o senhor traz para a evangelização com esta nova obra?

Creio que seja a diferença do tema, pois este vai inaugurar – e até mesmo fomentar – outros escritos nessa linha, de uma teologia aplicada. Na verdade, o livro nasceu da minha experiência como professor de Antropologia Teológica. O conceito de pessoa, que é o subtítulo da obra, é muito rico dentro do conceito de Teologia, que, aplicada, parece um pouco com Psicologia, porque quando você fala de Deus, fala de realidade humana.

No livro, o senhor aborda todo tipo de relacionamento ou tem algum específico?

Na verdade, o tema de “Quem me roubou de mim” é muito pretensioso, muito vasto e é muito difícil trazermos uma obra para o público que possa explicitar a grandeza desse assunto. O seqüestro da subjetividade é um assunto que aborda muitas formas de relações humanas, por isso eu me ative a algumas apenas. Não tive condições de condensar tudo isso num conteúdo só; acredito que possa haver desdobramentos e que, deste livro, possam nascer outros. Nele, nós tratamos um pouco da relação marido-mulher, namorados, amigos; um pouco da relação pai e filho, mas o seqüestro da subjetividade é muito mais do que isso.

A quem esta obra se destina?

A qualquer pessoa que, de alguma forma, já foi roubada de si mesma e que tem o desejo de resgatar-se, de sair dos cativeiros. É muito simples entrarmos nos cativeiros dos afetos. Isso acontece quando percebemos que alguém começou a mandar em nós, que nossa alegria ou tristeza está dependendo dele e que, infelizmente, perdemos o comando da situação. É um livro para todos aqueles que já experimentaram isso. Acredito que todos já passaram por alguma experiência de seqüestro da subjetividade, mesmo que não tenham consciência disso. Quem sabe se você, na hora em que o ler, descubra a verdade.

Como o senhor analisa as histórias reais que foram publicadas no livro?

É interessante porque todas elas foram contadas com muito sofrimento. Uma das características que eu observo no relato do povo, na tradução mais sincera da dor que sente, é que realmente as pessoas – que vivem essa experiência de seqüestro – sofrem muito. Mas esse sofrimento não é o suficiente para haver a melhora. Muitas vezes, elas não sabem sair do sofrimento (que tem). As histórias passam por gente muito concreta; o livro é todo muito concreto.

Um exemplo é de uma criança de sete anos que tem uma ascendência muito grande sobre o sentimento da mãe. Ela, na tentativa de fazer diferente sua história com o filho – uma vez que ela foi criada dentro de um regime extremamente ditador –, quis educá-lo com liberdade, mas faltou-lhe a disciplina necessária. Com isso, o menino perdeu a oportunidade de viver um processo saudável de ter limites. Isso é uma forma de seqüestro, pois você retira a pessoa da inteireza. Se você não dá aquilo de que a criança precisa, você a está privando do que é uma necessidade para ela.

Há também a história, que abre o livro, de uma mulher que veio do Líbano e casou-se na primeira semana que estava no Brasil, justamente porque estava só, pois seus pais já haviam morrido. Ela viveu uma vida inteira de maus-tratos, até o dia em que o marido morreu e ela percebeu que ele, mesmo morto, continuava tendo o poder de mantê-la no cativeiro. São seqüestros que se prolongam até mesmo quando os seqüestradores não estão por perto, porque o seqüestro da subjetividade é muito mais do que o roubo de uma materialidade; é o roubo daquilo que nós temos de mais profundo e valioso.

As nossas reações, hoje, podem ser reflexo da perda da subjetividade que tivemos em algum momento do nosso passado, ao qual ficamos presos e impedidos de ser livres?

Há uma regra interessante na Psicologia que nos ensina que não há ser humano incoerente, pois tudo o fazemos, mesmo que seja inconsciente, são atos coerentes de acordo com alguma história que vivemos. Uma pessoa fragilizada, muitas vezes, não sabe da fragilidade que tem; então, a liberdade é um exercício constante de descoberta e de posse para ela.

Nós não conseguimos ser livres da noite para o dia; aprendemos à medida que vamos vivendo. Um filho pode ser educado para a coragem, para a liberdade, ou não; tudo depende das influências que deixamos naquela criança, pois chega um momento em que tudo isso vem à tona e a vida vai se tornando mais exigente à medida que o tempo passa. Vamos ficando mais "impactados" pelos acontecimentos.

Ninguém nasce sabendo ser livre. Vamos aprendendo, embora isso seja um processo muito doloroso. Sempre digo que ser gente dá trabalho demais e o tempo todo nós fazemos essa experiência de descobrir, no hoje do tempo, aquilo que é influência do passado e que pode ser corrigido. Não estamos condenados a morrer nas neuroses que criaram dentro de nós quando éramos crianças, com os medos que assimilamos. Essa liberdade é que nos dá a possibilidade de lidarmos com o passado de maneira saudável.

Há algum capítulo que o senhor considera mais relevante?

O meu trecho favorito do livro é a parte do mito do amor romântico, porque é um tema que eu gosto de estudar; gosto da influência dos mitos na sociedade; trabalhei muito isso como professor de Hermenêutica. O mito do amor romântico fragiliza muito as relações humanas, porque ele nos coloca – claro, é um imaginário coletivo que chegou até nós – na esperança de que a vida, as pessoas e as relações sejam perfeitas.

O mito do amor romântico abrange tudo o que nós interpretamos ao longo da vida. Podemos ter, muitas vezes, uma visão romântica da realidade. Isso nos impede de ver o que é verdadeiro, porque a literatura é uma expressão da realidade, mas ela a suplanta a ponto de uma mentira ser absolutamente saudável do ponto de vista daquilo que ela me sugere. Contudo, ela não se adapta à realidade. É como ouvir um poema que nos provoca uma sensação muito bonita, mas nada nele é verdadeiro. Isso é muito interessante, porque a experiência da arte é quase um esquecimento da realidade. Nós precisamos dessa experiência redentora, mas ela só serve se estiver a serviço de um fortalecimento da nossa vida, daquilo que nós somos. Diante do mito do amor romântico, nós esperamos a pessoa perfeita, as realidades perfeitas, porque achamos que só seremos felizes no dia em que isso acontecer. Isso é, sem dúvida, um seqüestro pavoroso, porque a vida é agora.

"A vida nos jardins nos ensina a sabedoria milenar. Plantas precisam de podas para que não ultrapassem os limites estabelecidos. Não houve poda, por isso a árvore avançou território que não poderia ter avançado. Árvores crescem sem disciplina. A tesoura de poda é que dará o rumo que a árvore poderá seguir".

É interessante porque quando nós temos a experiência da "poda", ela nos parece muito doída, mas sabemos o quanto ela é necessária quando a árvore do vizinho cresceu do nosso lado. Porém, quando ela está no nosso quintal, ultrapassando para o território do vizinho, talvez não sintamos tanta necessidade dela [poda]. É justamente disso de que nós falamos o tempo todo, porque quando a vida do outro "cresce" demais "para o nosso lado" e nós permitimos, corremos o risco de que a nossa vida fique sufocada pela do outro. Mas não pode ser assim. A vida tem de ser, o tempo todo, experiência de equilíbrio. O casamento só pode dar certo à medida que as partes se respeitam e se complementam. Uma relação de amizade só pode dar certo quando mantemos os espaços estabelecidos. Mesmo que vez ou outra eu convide você para entrar neste "território", não significa que, a partir do momento em que você entrou pela primeira vez, que ele é de livre acesso. Preservar a sacralidade do outro é um elemento essencial para que as nossas relações sejam saudáveis. Espero que eu tenha ajudado você a viver e a estabelecer melhor as suas relações humanas. Deus o abençoe. Um grande abraço. Desejo que ninguém o roube nesta vida.

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