Skip to main content

Ser disponível

Ele fez de tudo na vida. Foi ateu, marxista, mercenário da Legião Estrangeira. Nas guerras matou muita gente. De repente se converteu. Fez-se monge sem sair do mundo. Foi trabalhar como estivador. Mas todo o tempo livre dedicava-o à oração e à meditação. Durante o dia recitava mantras.

Estranhamente tinha um jeito próprio de rezar. Pensava: se Deus se fez gente em Jesus, então foi como nós: fez xixi, choramingava pedindo peito, fazia biquinho com as coisas que o incomodavam como a fralda molhada. No começo Jesus teria gostado mais de Maria, depois mais de José, coisas que Freud explica. E foi crescendo como nossas crianças, brincando com formigas, correndo atrás dos cachorrinhos e, maroto, levantando os vestidinhos das meninas para vê-las furiosas como imaginou Fernando Pessoa.

E então rezava a Nossa Senhora imaginando como ela ninava Jesus, como lavava no tanque as fraldinhas e como cozinhava o mingau para o Menino as as comidas fortes para o bom José. E se alegrava interiormente com tais matutações porque as sentia e vivia na forma de comoção do coração. E chorava com frequência de alegria espiritual. Depois decidiu fazer-se religioso, da ordem dos Irmãozinhos de Foucauld, desses que vivem pobres no meio dos mais pobres. Continuou no mundo. Apenas encontrava de tempos em tempos a fraternidade. Criou uma pequena comunidade na pior favela da cidade. Tinha poucos discípulos. Apenas três que acabaram indo todos embora.

Só, agregou-se então a uma paróquia que fazia trabalho popular. Trabalhava com os sem-terra e com os sem-teto. Corajoso, organizava manifestações públicas em frente à Prefeitura e puxava ocupações de terrenos baldios. E quando os sem-terra e sem-teto conseguiam se estabelecer, fazia belas celebrações ecumênicas com muitos símbolos.

Mas todos os dias, por volta das 10 da noite, se enfurnava na igreja escura. Apenas a lamparina lançava lampejos titubeantes de luz, transformando as estátuas mortas em fantasmas vivos e as colunas eretas, em estranhas bruxas. E lá se quedava até as 11 horas. Todas as noites. Impassível, olhos fixos no tabernáculo.

Um dia fui procurá-lo na igreja. Perguntei-lhe de chofre:

- Meu irmão (não vou revelar o nome para não ser identificado), você sente Deus, quando depois dos trabalhos, se mete a escutá-lo na igreja? Ele te diz alguma coisa?

Com toda a tranquilidade, como quem acorda de um sono profundo, apenas disse:

- Eu não sinto nada. Há muito tempo que não escuto sua voz. Já senti um dia. Era fascinante. Enchia meus dias de música. Hoje não escuto mais nada. Talvez Deus não me falará nunca mais.

E então, retruquei eu:- Por que continua, todas as noites, ai na escuridão sagrada da igreja?

- Eu continuo, respondeu, porque quero estar disponível. Se Ele quiser se manifestar, sair de Seu silêncio e falar, eu estou aqui para escutar. E se Ele quiser falar e eu não estiver aqui? Pois, cada vez, Ele vem somente uma única vez. Como outrora.

Deixei-o em sua plena disponibilidade. Sai maravilhado e meditativo. É por causa desses que o mundo não é destruido e Deus continua a manter sua misericórdia sobre a humana perversidade: porque eles vigiam e esperam, contra toda a esperança, o advento de Deus que talvez nunca aconteçará.

Comments

Popular posts from this blog

O Lado Fatal

I Quando meu amado morreu, não pude acreditar: andei pelo quarto sozinha repetindo baixo: "Não acredito, não acredito." Beijei sua boca ainda morna, acarinhei seu cabelo crespo, tirei sua pesada aliança de prata com meu nome e botei no dedo. Ficou larga demais, mas mesmo assim eu uso. Muita gente veio e se foi. Olharam, me abraçaram, choraram, todos com ar de incrédula orfandade. Aquele de quem hoje falam e escrevem (ou aos poucos vão-se esquecendo) é muito menos do que este, deitado em meu coração, meu amante e meu menino ainda. II Deus (ou foi a Morte?) golpeou com sua pesada foice o coração do meu amado (não se vê a ferida, mas rasgou o meu também). Ele abriu os olhos, com ar deslumbrado, disse bem alto meu nome no quarto de hospital, e partiu. Quando se foram também os médicos e sua máquinas inúteis, ficamos sós: a Morte (ou foi Deus?) o meu amado e eu. Enterrei o rosto na curva do seu ombro como sempre fazia, disse as palavras de amor que costumávamos trocar. O silêncio ...

Desiderata *

Caminha calmo entre o ruído e a pressa e pensa na paz que podes encontrar no silêncio. Na medida do possível, e sem render-te, mantém boas relações com todas as pessoas. Diz tua verdade de maneira tranquila e clara; e escuta aos demais, inclusive ao teimoso e ignorante, pois eles também têm sua própria história. Evita as pessoas barulhentas e agressivas, pois elas são um desgaste para o espírito. Se te comparares aos demais, podes tornar-te vaidoso ou amargurado, pois sempre haverá pessoas menores e maiores que tu. Desfruta de teus êxitos, assim como de teus planos. Mantém o interesse em tua profissão, por mais humilde que seja; ela é um verdadeiro tesouro no fortuito mudar dos tempos. Sê cauteloso em teus negócios pois o mundo está cheio de enganos, mas não deixe que isto te torne cego para a virtude que existe. Há muitas pessoas que se esforçam por alcançar nobres ideais. Em todo lugar a vida está cheia de heroísmo. Sê sincero consigo mesmo. Especialmente,...

Pra Rua Me Levar* - e Divagações**

“Não vou viver como alguém que só espera um novo amor,  há outras coisas no caminho onde eu vou.  Às vezes ando só trocando passos com a solidão,  momentos que são meus e que não abro mão.” O que é o tão descrito amor e quais os sentimentos que ele envolve? As pessoas hoje em dia confundem muito – e talvez nem saibam – o que de fato representa o amor. Sem respeito, admiração, companheirismo, cumplicidade, alegria, realização e tantos outros detalhes, o amor nunca pode acontecer plenamente dentro de alguém. Por isso mesmo, o amor compreende muito mais que um único sentimento na vida das pessoas e nunca pode andar divorciado de outras ações. Existem momentos em que somos forçados a andar sozinhos - trocar passos com a solidão. Não porque queremos, mas porque não existe outra opção. Essa caminhada acaba sendo necessária, mesmo porque, a solidão não deve assustar e nem comprometer o sono: Passado algum tempo de aprendizado você passa a se conhecer, aceitar e ser feliz, i...