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Aninha e Suas Pedras

Acusem-me de romântico, de idealista. Sentenciem-me no tribunal dos valores modernos. Não tem problema. Mas eu acredito no ser humano e na bondade. Eu acredito em projetos desinteressados. Eu acredito na felicidade. Eu acredito na amizade sincera. Eu acredito que dá para fazer o bem sem mandar a fatura. Eu ponho fé nos homens e mulheres de boa vontade.

Acredito nisso tudo não porque seja um santo, de alma pura. Quem o é? Escolhi, no entanto, ser alguém de alma leve, uma boa pessoa (ainda que leituras alheias possam ser diferentes), um bom professor (ainda que algum aluno deteste minha aula), um bom pai (ainda que eu não goste de limpar cocô), um bom filho (ainda que meus pais reclamem mais minha presença), um bom marido (ainda que minha mulher vez por outra reclame que sou folgado). Tento.

Por ter essa agenda há algum tempo, fico buscando compreender certas coisas que acontecem nesse mundo velho sem porteira. Por que, por exemplo, pessoas gastam tanto tempo tentando destruir a vida dos outros em vez de investir no crescimento e na reformulação da sua? Por que as pessoas empurram outras do penhasco, depois de um assalto? Por que as pessoas partem do pressuposto de que sempre há alguma tramoia contra elas, escondida nas coisas boas que lhes acontecem?

São perguntas minhas, de pura reflexão filosófica. As faço olhando da janela do meu escritório e vendo um harmonioso casal de araras voando. Uma poesia pictórica. Por falar em poesia, “Aninha e suas pedras”, de Cora Coralina:

“Não te deixes destruir… /ajuntando novas pedras e construindo novos poemas/Recria tua vida, sempre, sempre/ Remove pedras e planta roseiras e faz doces /Recomeça/Faz de tua vida mesquinha um poema/E viverás no coração dos jovens e na memória das gerações que hão de vir/Esta fonte é para uso de todos os sedentos/Toma a tua parte/Vem a estas páginas e não entraves seu uso aos que têm sede.”

A poesia é a deriva da língua. Por ela escapa-se do congelado, convocando-se novos e diferentes sentidos sempre. O mundo é outro na poesia. Cora nos convida a tomar as rédeas de nosso mundo. A cada um cabe remover as pedras, os travos, os entraves e reinventar-se. A cada um cabe cuidar de seu jardim, plantando rosas que perfumarão a estrada. Por que deixar as ervas daninhas tomar conta? Se a escolha é entre fazer doce ou queimar o assado, por que não se lambuzar?

Recomeçar é uma palavra-chave num mundo movente. A mesquinhez é opção e, diga-se, uma triste opção para quem pode escolher a alegria. Como diz a poetisa: é possível fazer poesia da mesquinhez. Dá para ajudar o sol a aparecer, empurrando a nuvem negra sobre a cabeça, soprando com o vento da alma leve. A vida só faz sentido se habitarmos as memórias boas dos que conosco convivem. Urge fazer com que alguém saia de um encontro conosco, por mínimo e banal que seja, melhor do quando chegou.

Se é difícil para você pensar assim, se você já jogou a toalha no tatame da vida, paciência. Lamento muito por você. Mas a fonte é para todos. Toma a tua parte e não entraves o seu uso aos que têm sede. A vida é bela demais e só uma. O sorriso da minha Aninha e da minha Marininha são o atestado diário de que um mundo feliz existe. Basta vivê-lo. Sempre, sempre

Sérgio Freire

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