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Certas Coisas

Não existiria som se não houvesse o silêncio/Não haveria luz se não fosse a escuridão/
A vida é mesmo assim: dia e noite, não e sim./
Cada voz que canta o amor não diz tudo o que quer dizer/
Tudo o que cala fala mais alto ao coração/Silenciosamente eu te falo com paixão…/
Eu te amo calado como quem ouve uma sinfonia de silêncios e de luz/ 
Nós somos medo e desejo/Somos feitos de silêncio e som/
Tem certas coisas que eu não sei dizer…/ 
A vida é mesmo assim: dia e noite, não e sim…

Há uma palavrinha que eu adoro: oximoro. Segundo seu Aurélio, oximoro é uma figura de estilo que consiste em reunir palavras contraditórias: “silêncio eloquente”, “valentia covarde”, “inocente culpa”. Gosto dessa palavra porque ela traduz a essência da linguagem, porque em si carrega a poesia pura das contradições dos sentidos que habitam em cada um de nós. É “a ferida que dói e não se sente”, é “o contentamento descontente”, é “a dor que desatina sem doer”. Nada mais vivo do que “um andar solitário entre a gente”, do que “nunca contentar-se de contente”, do que ver “um cuidar que ganha em se perder”. Camões rulez.

Na completude que traz em si, o oximoro é denso de sentido. Um “silêncio eloquente” diz muito mais do que dez mil palavras proferidas. Uma “valentia covarde” põe às claras a vontade de enfrentar quixotescamente a batalha mais perdida. Uma “inocente culpa” mostra a contradição linda do fazer pueril, algo de dentro, com o peso da cobrança imposto ao ato, algo de fora. Como são eficientes os chinesinhos semanticistas dentro de nós: Yin e Yang.

Nossa identidade é um oximoro. Somos porque não somos outra coisa. O silêncio faz parte da identidade do som, a escuridão é que permite que a luz seja. Dia sem noite não existiria, assim como o sim não teria seu sentido se não houvesse o não para lhe conferir a identidade por sua ausência. O que seria do bem sem o mal a lhe provocar as benemerências? É pelo outro, pela alteridade que a identidade do um se faz. Como diz o poeta Manoel de Barros para matar a pau: “Tem mais presença em mim o que me faz falta”.

Nossa vida é um oximoro. Viver no oximoro é se permitir desdicionarizar a vida. É se permitir sair do sentido fixo, congelado, da existência dura e seca, e habitar a movência, o movimento, a inquietude do sangue fervente que corre nas veias da nossa história. É ser som e é ser silêncio. É ser dia e é ser noite. É ser sim e é ser não. É falar silenciosamente com paixão. É amar calado, ouvindo a sinfonia de silêncio e de luz. É ter medo e desejo. Porque há um espaço de sobreposição nas fronteiras dos sentidos, o oximoro não confia no seu Aurélio.

O sentido é um oximoro. Entre o preto e o branco é o cinza que me acolhe mais confortavelmente. No cinza, eu sou preto. E eu sou branco. E não sou nenhum. O oximoro é a adolescência dos sentidos: nem criança, nem adulto. E ambos. O oximoro traz na sisudez da antítese a molecagem da linguagem, brincando de pique com os sentidos, que correm soltos gargalhantes e sem gargalheiras.

Ler a música de Lulu, além de ouvi-la, nos lembra isto: a linguagem encontra seus meios, não esquece seus inícios e chega a seu fim, dizendo o que quer dizer. A nós, instrumentos da linguagem, é que vez por outra falta a palavra, escapa a forma de dizer falando ou escrevendo. O que não é ruim. É assim. Há fatos tão intensos que só os compreendemos na absolutidão do silêncio. A falta constitui a presença também. E aí nos resta o silêncio. “Só uma palavra me devora: aquela que meu coração não diz”.

Confesso aos meus dezessete leitores: tem certas coisas que eu não sei dizer. Aí a linguagem assume de vez o comando com seus silêncios eloquentes. E como ela dá conta do recado…

A linguagem é uma deusa endiabrada.

Sérgio Freire

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